quinta-feira, 28 de maio de 2009

Sobre o silêncio.

“PIOR DO QUE UMA VOZ QUE CALA, É UM SILÊNCIO QUE FALA”
'Então, parei para interpretar a frase acima e ... imediatamente me veio à cabeça situações em que o silêncio me disse verdades terríveis pois, você sabe, o silêncio não é dado a amenidades.
Um telefone mudo. Um E-mail que não chega.
Um encontro onde nenhum dos dois abre a boca.
Silêncios que falam sobre desinteresse, esquecimento, recusas. Quantas coisas são ditas na quietude, depois de uma discussão?
O perdão não vem, nem um beijo, nem uma gargalhada para acabar com o clima de tensão. Só ele permanece imutável, o silêncio, a ante-sala do fim.
É mil vezes preferível uma voz que diga coisas que a gente não quer ouvir, pois ao menos as palavras que são ditas indicam uma tentativa de entendimento. Cordas vocais em funcionamento articulam argumentos, expõem suas queixas, jogam limpo. Já o silêncio arquiteta planos que não são compartilhados.
Quando nada é dito, nada fica combinado. Quantas vezes, numa discussão histérica, ouvimos um dos dois gritar: " Diz alguma coisa, mas não fica aí parado me olhando! "
É o silêncio de um, mandando más notícias para o desespero do outro.
É claro que há muitas situações em que o silêncio é bem-vindo. Mesmo no amor, quando a relação é sólida e madura, o silêncio a dois não incomoda, pois é o silêncio da paz.
O único silêncio que perturba é aquele que fala. E fala alto.
É quando ninguém bate à nossa porta, não há recados na secretária eletrônica e mesmo assim você entende a mensagem...'

sábado, 23 de maio de 2009

Michel...

está 'estarrecido, chocado, indignado' com culto ao Nazismo.

É, o acontecimento foi ontem, dia 22/05. Segundo Michel e um amigo, a Adidas, grande empresa alemã, mostrou seu lado "favorável" ao Nazismo.
A empresa organizou uma festa numa casa na Gávea, para convidados. Mas, coincidentemente ou não, a casa era dotada de símbolos que lembravam Hitler e seus seguidores.
Os azulejos da piscina eram desenhados com suásticas. Em um dos quartos da casa, havia um retrato a óleo de um militar nazista. E, no bar, encontrava-se um poster da "Hamburg Kriegsmarine" (Marinha alemã).

Realmente, não me contive em comentar tal fato. Expus a Melamed o que sinto.
E segue minha indignação:

"Nem tudo é perfeito. E o que um olhar analítico não é capaz de observar? Até as grandes empresas vacilam. Cultuar o Nazismo numa política tão libertina e tão liberal como é a do Brasil é um terrível paradoxo. Brasileiros (mestiços e multiculturais) exaltando um regime tão conservador e tão devastador? "É a selva brasileira", Melamed. Definitivamente, é o Brasil que eu amo, que eu odeio. O Brasil dos mulatos, caboclos e cafuzos. O Brasil dos católicos, dos judeus, dos macumbeiros, dos ateus. E, agora, o Brasil dos Nazistas. Seria o fim? Fica longe dessas suásticas, caro judeu. Até."


É, minha gente, mais uma vez eu digo "É a selva brasileira".
O pior é que há pessoas tão mesquinhas a ponto de defender a Adidas.
Mesmo que a casa tenha sido apenas alugada para a festa (foi o que eu soube), a empresa vacilou.


Mais informações?
Acesse: http://oglobo.globo.com/blogs/cuenca/ ou Blog do Michel Melamed.




Até,
Ana Paula

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Machado de Assis - Dom Casmurro

Capítulo CVIII - Um Filho

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse, amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio da minha pessoa. Quando íamos a Andaraí e víamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Captuzinha, por diferenciá-la de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos cheios de inveja. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo mentalmente ao céu que no-las matassem...
... As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao mundo o fruto delas. Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão robusto e lindo.
A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la: nunca a tive igual, nem creio que a possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não afligir Capitu convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais novos. Fora, vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos, a observá-lo, a mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas no foro por descuido.

sábado, 16 de maio de 2009

Sherazade e as Mil e Uma Noites

Conta-se que em tempos remotos havia um rei membro de uma poderosa dinastia que descobre certo dia que sua mulher o trai com um escravo. Shariar, em crise, sai pelo mundo acompanhado de seu irmão numa busca: ele quer saber se existe alguém mais infeliz do que ele. A resposta é positiva e quem lhe garante isso é uma bela jovem que também trai o marido. Desesperado, eles retornam ao reino e Shariar decide tomar uma atitude violenta: se casaria a cada noite com uma jovem diferente, e no dia seguinte mandaria matá-la. O chefe de estado ficava absorto em seus pensamentos e aflições. O desespero do homem traído que nunca mais confiaria nas mulheres! Depois de várias mortes, aparece a jovem Sherazade, filha de seu principal vizir. Ela pede ao pai que deseja se casar com o rei. O pai não entende o que a filha planeja, tenta impedir, mas de tanto insistir, ela o convence. A bela sultana possui grande cultura e inteligência. Ela elabora uma estratégia e por meio de histórias que vai sucessivamente, noite após noite, contando a um rei que no início estava desesperado, mas aos poucos, ouvindo as histórias, vai se apaixonando por ela. Sherazade contando suas histórias vai aos poucos mostrando seu amor, seu respeito e fazendo Shariar feliz. A sultana usava sua perspicácia e improvisação para que, além de salvar sua própria vida, salvasse também a vida de todas as mulheres do reino. Shariar sofre e tem uma crença de que ninguém poderia amá-lo verdadeiramente; ele se apresenta como um homem que perdeu a fé na humanidade e decide que daí para diante não dará possibilidade a nenhuma mulher de traí-lo, e levará apenas uma vida de prazer. Dorme cada noite com uma virgem, que é morta na manhã seguinte pelo seu vizir.
Sherazade desde o início mostra a esperança da narração. Ela acredita que suas histórias possam desviar o rei de seu hábito. O rei Shariar simboliza uma pessoa completamente dominada por seus fracassos. Sherazade, a heroína, coleciona crônicas de pessoas antigas e poetas, lê livros de ciência, medicina, e sua improvisação na hora de finalizar uma história deixa aquele ‘’sabor de quero mais’’ na vida do rei. Uma mulher sábia, espiritualizada e de boa formação e linda! Além de tudo isso, Sherazade tinha um projeto político bem traçado, que foi libertar todas as mulheres do reino do terrível destino imposto pelo rei. O amor no lugar do ódio e da vingança, os prazeres do sexo e a criatividade de inventar uma história cada noite. Mil e uma noites de amor: uma mulher feliz e realizada e um homem que percebeu que valia a pena mudar de idéia em relação ao que pensava sobre as mulheres.

Fonte: Texto publicado em maio de 2008 no Jornal Voz da Terra, da cidade de Assis SP.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Conto - Clarice Lispector

As Águas do Mundo

Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é um mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem. Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que oposição pode ser um pedido. O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada. Agora o frio se transforma em frígido. Avançando ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora, já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol, quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe em goles grandes, bons. E era isso que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. Mergulha de novo, de novo bebe, mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, e ela mergulha de novo; está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação. Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas – ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A função da Arte

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!”


Eduardo Galeano

domingo, 3 de maio de 2009

Crítica - Homemúsica

As hélices convexas de um helicóptero em miniatura - por Paulo Bio Toledo

Prólogo

Michel Melamed é sensação cult. Tem fileiras de fãs. Dezenas de comunidades no Orkut. Sites e blogs na internet com mais de mil visitas diárias. Programa na TV. É o Dom Casmurro da Rede Globo. E já rodou o mundo tomando choques e queimando dinheiro. Michel Melamed é um poeta dentro de um liquidificador de linguagens. Seu Homem-música Helicóptero voa baixo e distante… Seu som é um eco longínquo no segundo plano de um teatro deslumbrado e ansioso por, agora sim, Michel Melamed (!).

Capítulo 1 - Da contradição entre o sucesso e a provocação

Melamed é uma máquina de conceitos. Em entrevista ao jornalista Valmir Santos, no ano de 2006, regurgita dezenas deles: “terceira via para a cena”; “espectador co-autor”; “transgressão de forma e conteúdo”; “tudo emana da página em branco”; “profanação do espaço”; “síntese do espectador” etc… Dentre todos (nenhum muito original, já diria Hans-Thies Lehmann, enquanto levava travesseiradas de Iná, podemos encontrar um lugar, uma inquietação que permeia seu imaginário: a ação de “provocar” “sacudir” as composições habituais do teatro e da sociedade. Que, através de sua manifestação teatral-performática criem-se novos canais de percepção, pensamento e cognição sobre, no caso dessa Trilogia Brasileira, o Brasil. Mas Melamed é sensacionalmente Cult. Desde seus patológicos auto-choques regurgitofágicos é o menino contemporâneo da cena teatral. De seus espetáculos já se espera, previamente, a provocação em fragmentos. A fórmula, já bastante assimilada, é inserida, até o cansaço, numa estrutura “espetacularizada” dele mesmo: o show de seu “anti-show”. Em outros termos: sua tentativa de impor uma fórmula de ruptura “pós-dramática” acaba por superdimensionar a estrutura provocativa. O que esconde, por assim dizer, os aspectos históricos tanto do teatro quanto da sociedade. Pra não falar do Brasil, que se pretende tema da trilogia. E a explosão formal passa a sobreviver por si só. A obra como recipiente de um vanguardismo experimental pré-moldado. E, assim, ele provoca quem?

Capítulo 2 - Da dicotomia inevitável entre arte e vaidade

Entre aquilo que se convencionou chamar “estilo” ou, em outro campo do pensamento, “autoria” encontram-se as características que delineiam, na forma, um pensamento sobre arte de um determinado indivíduo. No nosso incansável mundo da mercadoria isso é a ponta de lança do marketing. Michel Melamed e sua estética provocativa, cômica, poética e artificialmente visceral já estão, como tudo, previamente empacotados e pronto a serem consumidos. Todavia, nosso Melamed parece esbaldar-se com seu rótulo; utiliza-se, para tanto, dos recursos mais diretamente ligados a sua “marca”. A grande imagem disso é a projeção no meio do espetáculo das outras duas partes da “Trilogia Brasileira” (Regurgitofagia e Dinheiro Grátis). Não como diálogo continuado, afinal trata-se de uma trilogia, mas como objeto de sarcasmo do “apresentador” – personagem estereotipada que remete ao que há de mais perverso na mídia. Ou seja, através de vias tortas, um auto-elogio. Seu trabalho prévio aparece como a própria estética do contraponto; que enoja os conservadores. Ademais, os recursos de stand-up, da imitação cômica, da música pop, com seu inevitável líder popstar, das poesias autorais etc. remetem todos com furor e alta velocidade ao verdadeiro protagonista: Michel Melamed. Ou melhor, remetem às potencialidades técnico-artísticas de Michel Melamed e seu incrível teatro performático. Conclui-se, ao fim de Homemúsica, que Michel Melamed é um bom ator e um imitador bastante engraçado; além do que, toca guitarra, canta e escreve poesias.

Capítulo 3 – A overdose de subjetividade liquida e a morte lenta e gradual desta crítica que se tentava material

Da poesia restam estilhaços cortantes; alguns fragmentos de músicas; um ou outro momento de puro lirismo… (daqueles que já se queixava Manuel Bandeira: sem qualquer sombra de libertação). E em programa enorme em branco… A ser preenchido? A afirmar o vazio metafísico da existência? Ou a lembrar as brancas torres de marfim? “E a cidade dizia: fudeu…” … de visceral fica só o tédio…

Epílogo

Enquanto escrevo essa crítica, da rua eu ouço um grito inconformado de uma menina ao celular:
“Só podia ser carioca!”
É a deixa mítica pra que se encerrem essas linhas…
70×40 de uma cartolina em branco representam quantos por cento de uma árvore?

Fonte: Publicado em 1, April, 2009 - Revista Bacante

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Odisséia, de Homero - Penélope

Como é sabido, Penélope, esposa de Ulisses, no texto homérico ‘A Odisséia”, é inspirada por Athena a tecer uma mortalha destinada ao corpo do velho Laertes, seu sogro. Uma mortalha para o corpo do pai de Ulisses, e, também limite mortuário para o corpo do esposo cuja ausência já se estende por vinte anos. Apaixonada e fiel ao seu marido, Penélope decidiu que o esperaria até a sua volta. Porém, perante a insistência de seu pai, e para não desagradá-lo, ela resolveu aceitar a corte dos pretendentes à sua mão, mas com uma condição: casaria somente após terminar de tecer a mortalha de seu sogro, Laertes. De dia, aos olhos de todos, ela tecia; à noite, desmanchava todo o trabalho. Penélope fia para sobreviver e, com isso, tece seu destino.

O ato heróico de Penélope só pode ser reconhecido exclusivamente por ela. O segredo é que sustenta sua espera. Reclusa em sua atividade, apenas Penélope pode reconhecer a dimensão do seu ato, valorizando, assim, seu heroísmo, porque, afinal, só a ela cabe bordar e desmanchar os pontos, seu ato sempre inconcluso.

A identidade de Penélope se estabelece na trama do bordado: lugar de onde partem todos os seus questionamentos frente ao mundo cerceador. Fazendo e desfazendo suas dúvidas, Penélope realiza a tessitura infinda da vida, da espera, da viagem pelos mares abissais da sua existência, uma circunavegação de si mesma.

A poeta baiana Myriam Fraga posiciona tanto Ulisses como Penélope em sua trama poética:

Há os que partem
E os que tecem,
Na urdidura das sombras
É Penélope
Mais astuta que Ulisses?
Quem dirá na surdina
Do heroísmo dos pontos,
O selvagem pontear
Das agulhas na carne?
São pontos de um bordado
Que não cresce
Que se renova apenas
Do que tece e destrói
Nos dedos que noturnos
Desenlaçam
O fio das meadas.
No entanto esta tarde é
Como um barco
Onde me ausento
De mim, de meus cansados
Molhes de pedra.
A angústia é meu timão,
Meu astrolábio
Nesta inquieta jornada.

Fonte: PENÉLOPE NA POESIA DE MYRIAM FRAGA: UM ARQUÉTIPO (DES)CONSTRUÍDO - Ricardo Nonato Silva (UFBA/FAPESB)